quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Em sentença histórica da Corte Interamericana (OEA), Brasil é condenado por trabalho escravo e tráfico de pessoas

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) emitiu no último 15 de dezembro a sentença do Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil, condenando o Estado brasileiro por ser internacionalmente responsável por não garantir a proteção de 85 trabalhadores de serem submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado a realização de justiça também para outros 43 trabalhadores resgatados desta condição.

Em consequência de sua condenação, o Estado brasileiro deverá retomar as investigações sobre o caso, adotar medidas para evitar que a prescrição seja aplicada ao delito de escravidão, e reparar as vítimas pelos danos imateriais sofridos, pagando indenizações pecuniárias a 127 trabalhadores e a uma trabalhadora. Além dos 85 resgatados na fiscalização de 2000, que receberão 40 mil dólares cada um, por terem sido submetidos a trabalho escravo e tráfico de pessoas, se somam, em razão da denegação de justiça, outros 43 trabalhadores resgatados na fiscalização de 1997, os quais receberão 30 mil dólares cada.

Tais valores dizem por si a gravidade das ofensas sofridas por essas pessoas.

A fiscalização de março de 2000 documentou que encontrou trabalhadores em situação de escravidão. Foram aliciados por um 'gato' no interior do Piauí e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até chegarem à fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem eletricidade, camas ou armários. O teto era de lona. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se adoentavam com regularidade e não recebiam atenção médica. O trabalho era realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada.

A sentença ora publicada é histórica, porque é a primeira vez que a proibição da escravidão e da servidão é aplicada no julgamento de um caso concreto no Continente Americano, estabelecendo parâmetros para o conceito previsto no art. 6º da Convenção Americana, em particular na definição do que se considera responsabilidade e dever do Estado no enfrentamento à escravidão moderna e ao tráfico de pessoas.

A sentença é também paradigmática porque reconhece que a violação ao direito de não ser submetido a escravidão está inserida em um contexto de discriminação estrutural dos trabalhadores escravizados em razão de sua situação de vulnerabilidade econômica. Descreve que tal discriminação foi reiterada por parte da administração de justiça e outros setores, quando as vítimas ou seus representantes, em busca do reconhecimento de sua dignidade, recorreram à justiça para denunciar a submissão à servidão e tráfico, pleiteando a devida reparação, e não receberam qualquer resposta do poder judiciário.

O Tribunal considerou que as características específicas a que foram submetidos os  trabalhadores resgatados em março de 2000 foram além da servidão por dívida e do trabalho forçado, ao configurar: “violação à integridade e à liberdade pessoais (violência e ameaças de violência, coerção física e psicológica dos trabalhadores, restrições da liberdade de movimento); os tratamentos indignos (condições degradantes de habitação, alimentação e de trabalho) e a limitação da liberdade de circulação (restrição de circulação em razão de dívidas e do trabalho forçado exigido), foram elementos constitutivos da escravidão no presente caso”. “Foi constatada a existência de trabalho exaustivo, condições degradantes de vida, falsificação de documentos e a presença de menores de idade”.

Na Sentença fica explicitada a responsabilidade dos Estados “de garantir as condições necessárias para que não ocorram violações a esse direito inalienável e, em particular, o dever de impedir que seus agentes e terceiros particulares atentem contra ele”. Os Estados devem assegurar “que nenhuma pessoa seja submetida a escravidão, servidão, tráfico ou trabalho forçado, mas também requer que os Estados adotem todas as medidas apropriadas para pôr fim a estas práticas e prevenir a violação do direito a não ser submetido a essas condições, em conformidade com o dever de garantir o pleno e livre exercício dos direitos de todas as pessoas sob sua jurisdição”.

Para Xavier Plassat, Coordenador da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT: “se por um lado é lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para assegurar que a luta contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar, por outro lado é muito oportuno, na conjuntura política que essa sentença é proferida, que o Brasil perceba que continuará sendo monitorado pela comunidade internacional para que não deixe de ser a referência à qual chegou a ser identificado - por várias instâncias da ONU, inclusive a OIT - no combate ao trabalho escravo”.

A obstrução às garantias do sistema de justiça também foi uma das principais violações constatadas no Caso Brasil Verde, pois nenhum dos perpetradores chegou a ser efetivamente responsabilizado e nenhuma das vítimas recebeu reparação.

Nesse sentido, Beatriz Affonso, Diretora do CEJIL para o Programa do Brasil, enfatiza que “a decisão do Tribunal é emblemática porque cria um precedente importante ao declarar o caráter imprescritível do delito de escravidão segundo as normas do Direito Internacional por entender que a aplicação da prescrição constitui obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas.”

O combate à escravidão contemporânea requer uma ação de caráter integral. Além de pressupor uma normativa com conceitos vigorosos, hoje no Brasil já garantida na formulação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é necessário que a atuação repressiva e judiciária seja eficiente. A sentença da Corte Interamericana reforça a tese de que combater o trabalho escravo requer políticas abrangentes que possibilitem a educação, o combate a discriminação de raça e de gênero, o acesso ao direito ao pleno desenvolvimento, acesso a terra, e a erradicação de todas as demais mazelas que caracterizam a discriminação estrutural que a Abolição de 1888 ainda não superou.

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