quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Conheça a vida de Edgar, o maior personagem de Allan Poe



Cabelos desalinhados, olhar provocador, abismos no lugar de olheiras, lábios cinicamente desenhados: antes mesmo dos textos que escreveu, o retrato de Edgar Allan Poe já causa estranhamento. Se alguém que nunca o tenha visto lhe lançar um relance, fatalmente retornará o olhar. Fatalmente se inquietará diante da expressão ora enigmática, ora melancólica, mas sempre desafiadora do autor estadunidense.

Isto acontece porque o retrato de Poe é também o de sua vida. Sua breve e tumultuada vida, que começa em 19 de janeiro de 1809, em Boston, e se encerra em 07 de outubro de 1849, em Baltimore. O retrato de um rosto esculpido pela genialidade, mas também vincado pelo desequilíbrio, pelo álcool e por uma incontrolável tendência à autodestruição.

Segundo filho dos atores David Poe e Elizabeth Arnold (tinha um irmão mais velho e uma irmã mais nova), Edgar perde ambos antes de completar três anos. É adotado logo depois pelo rico casal John Allan e Frances Kielling Allan, de Richmond.
É DE MENINO QUE SE TORCE O PEPINO
Com a adoção, a criança recebe boa educação e viaja pelo velho mundo – a família morou por cinco anos na Inglaterra. Mas, ainda que a infância tenha sido marcada por alguma calmaria, Poe não demora a apresentar o violento temperamento que o caracterizou, desde sempre, como enfant térrible. Conforme cresce, vai acumulando repreensões e sendo expulso das escolas em que estudava.

Em 1824, quando ingressa na Universidade de Charlottesville, Poe já se destaca pela inteligência e pela destreza física (chega a nadar por 11 quilômetros contra a poderosa corrente do rio James, na Virgínia, somente pela façanha).

Mas o comportamento provocador, as apostas e, principalmente, a bebida logo passam a causar problemas mais sérios. Pouco depois, Poe recebe um irrecusável convite para se retirar da instituição. Isso leva o relacionamento com o pai adotivo, já um tanto turbulento, às raias do inviável.
ENTRE A PENA E A FARDA
Nos anos seguintes, segue-se um período obscuro em sua vida, durante o qual se sabe apenas de frequentes viagens para fora do país. Na ocasião, Poe já escreve poesia, vindo a publicar seu primeiro livro, Tamerlane e outros poemas, em 1827.

Em 1829, resolve seguir carreira militar e é admitido na conhecida Academia de West Point; mas é novamente afastado por indisciplina. Neste mesmo ano seu segundo livro, Al Aaraaf, Tamerlane e poemas menores, é publicado. O terceiro, Poemas, vem em 1831, quando Poe vai morar com a tia Eliza Clemm, em Baltimore.

Mas a rebeldia do temperamento não se atenua. Pelo contrário: a obsessão pela contravenção o leva a colecionar problemas e desafetos. Para piorar, as complicações pessoais se acumulam. Após o falecimento da mãe adotiva, o pai se casa com uma mulher mais jovem, que lhe dá dois filhos. Assim, Poe fica impedido de se tornar herdeiro da fortuna paterna e decide se afastar de vez.
A FORMAÇÃO DO CRÍTICO LITERÁRIO
Após enfrentar tempos de verdadeira penúria, começa a participar de concursos literários. E vence o da revista Baltimore Saturday Visitor com o conto Manuscrito encontrada em uma garrafa. Na mesma época, também conquista prêmios nas categorias de poesia e conto do periódico Southern Literary Messenger, o que abriu as portas para um período de (relativa) prosperidade.

O fundador do Southern... convida Poe a dirigi-la. Como editor e crítico, ele passa a demonstrar todo o seu talento e sua sensibilidade estética. Escritor maduro, só faz refinar sua técnica nos contos, poemas e resenhas literárias que produz.

A revista se impõe como referência, e Poe atinge notável status no meio, de modo que a relativa estabilidade profissional se estende à vida pessoal: ainda morando com a tia, ele acaba por se casar com a filha dela, a prima Virginia Clemm, de apenas 13 anos, em 1836.
Mas a calmaria não dura muito mais. Ao cabo de dois anos, o incorrigível Poe tateia o terreno movediço rumo ao abismo alcoólico, o que devasta a boa relação que tinha com o patrão: acaba demitido.
TEMPOS DO GROTESCO E DO ARABESCO
Desempregado, novamente decide mudar de ares e parte, com Virginia, para Nova Iorque. Lá é publicado, em 1838, seu texto mais longo, A narrativa de Arthur Gordon Pym. Seguem-se novamente alguns anos de certa tranquilidade, durante os quais Poe produz intensamente.

São dessa época as suas obras mais famosas. Como vários dos Contos do Grotesco e do Arabesco, também conhecidos como Histórias extraordinárias e que incluem A queda da casa de Usher, de 1840, Assassinatos da rua Morgue (considerada a primeira história genuinamente detetivesca da literatura), de 1841, O corvo e outros poemas, de 1845, entre outras.

Mas, apesar do reconhecimento, Poe segue esbarrando nas dificuldades arquitetadas pelo seu próprio gênio. E continua incapaz de proporcionar, a si e à mulher, uma vida minimamente digna. Isso agrava o já combalido estado de saúde de Virginia, que, pouco depois, em 1847, morre de tuberculose.
MORTE E MISTÉRIO

A partir daí a ruína é total. Se antes Poe caminhava lentamente para o suicídio, agora corre a passos largos. E o faz com vigor, bebendo cada vez mais, comportando-se de forma violenta e sofrendo seguidos ataques de delirium tremens. Até que, no outono de 1849, durante um tour literário que promove para angariar fundos, um anoitecido Poe entra em uma taberna de Baltimore; e lá consome suas últimas horas em bebedeira selvagem.

Existem controvérsias sobre as causas da morte. Há quem diga que foi o alcoolismo; há quem garanta que foi assassinato; e há quem acredite nas mais diversas doenças. O fato é que, naquela última noite, já avançada, quase parindo o dia, Poe cambaleia para fora da taberna e sai perambulando pelas ruas. Até que o vento noturno, velho conhecido e tão inspirador em outras épocas, visita-o uma última vez.

Como de costume, o sopro anuncia-se pelo apagar das velas nos postes e pelo ranger de portas distantes. E o ataca, desta vez mais implacável do que nunca, para extinguir-lhe a chama da existência. Pouco antes do amanhecer, Poe é encontrado inconsciente e levado ao hospital Washington College – onde, com 40 anos, vem a falecer. É enterrado sem qualquer cerimônia em uma vala comum do cemitério local.
A VIDA COMO LEGADO
Como se vê, não é à toa que Poe permaneça até hoje. Ao absorver a tragédia – a própria e a alheia – para nos devolver relatos que causam estranheza e fascínio, o autor se coloca ao lado de Guy de Maupassant, Téophile Gautier, Ambrose Bierce e tantos outros atentos observadores das minúcias secretas do cotidiano do século XIX.

A diferença é que, em Poe, a criação literária se dá com rigor inédito. Embora de comportamento incorrigível, ele considera sagrada a disciplina ao escrever. Nesse sentido, é tirano, até – basta conhecer as ideias expostas em textos como A Filosofia da ComposiçãoO Princípio Poético e Marginalia.

Crítico implacável, poeta exigente e contista inventivo, Poe pratica o que prega. Os movimentos de sua pena não parecem ser senão os de um espírito tumultuado, os rodopios de uma alma insatisfeita. Os rompantes de seu texto não são senão as sinuosidades de seu temperamento. Não surpreende que ele responda por um estilo até hoje cultuado, que vai das exclamações às reticências, como o esgrimista que ataca e se defende na hora exata.

E é por esta capacidade de escrever com a própria vida que Poe se tornou, também, o grande personagem de si próprio. Antes de Roderick Usher, de Arthur Gordon Pym ou de William e Wilson, foi Poe, e ninguém mais, a principal vítima de neuroses transmutadas em atrocidades, o acossado pelas sombras, o perseguido e o perseguidor, o obcecado por aquilo que oculta o espesso véu do cotidiano.

Melhor para nós que, em meio a tanto tumulto, Poe ainda tivesse tempo para empunhar a pena. E que, inacreditavelmente lúcido, conseguisse gravar no papel a marca perene do gênio.

*Oscar Nestarez é ficcionista de horror e mestre em literatura e crítica literária. Publicou Poe e Lovecraft: um ensaio sobre o medo na literatura (2013, Livrus) e as antologias Sexorcista e outros relatos insólitos (2014, Livrus) e Horror Adentro (2016, Kazuá).

Via Revista Galileu

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